Arautos d'El-Rei | Portugal precisa de se descolonizar?
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Portugal precisa de se descolonizar?

Com as mesmas reservas expostas pelo Coronel Brandão Ferreira, no comentário abaixo, é com prazer que publicamos um oportuno artigo do Coronel David Martelo sobre o hipócrita e nefasto movimento «contra» o racismo em Portugal:

Liceu Diogo Cão em Sá da Bandeira, Angola. Apesar da pilhagem feita pelos cubanos e da ruína causada pela guerra civil (após a chamada «independência») ainda subsistem nas principais cidades de Angola muitos vestígios da nossa presença civilizadora: igrejas, escolas, liceus, hospitais, caminhos de ferro, edifícios municipais, etc. É a isto que a esquerda chama odiosamente de «colonialismo» e «racismo». (Foto: sanzalangola.com)

Em Março de 1953, com seis anos de idade, encontrava-me em Angola, mais precisamente em Sá da Bandeira (actual  Lubango). Nesse mês, iniciava-se o ano lectivo em Angola e fui matriculado na Escola n.º 59, para frequentar a 1.ª classe. No trajecto de minha casa para a escola,  tinha  de  atravessar  uma  pequena  sanzala,  cujos  habitantes  tinham  um  aspecto semelhante aos encontrados pelos navegadores portugueses quando ali chegaram no século XV: andavam seminus e quase não falavam português. Depois de passar a sanzala, ficava diante do Liceu Diogo Cão, um dos dois únicos liceus que então existiam em Angola. A minha escola ficava ainda para lá do liceu.

Assim que começaram as aulas, logo notei que tinha como parceira de carteira uma menina negra. Mas todos os outros meninos eram brancos. Não me recordo de qualquer incidente de teor racial relacionado com a minha colega de carteira.

No meu ambiente familiar, a questão racial era encarada com verdadeiro espírito cristão, pelo que a única constatação que se fazia era a de que havia pouquíssimos angolanos de cor com um estatuto social semelhante ao dos brancos. Isso devia-se ao seu atraso civilizacional, mal que, afirmava-se então, as autoridades portuguesas estavam a tratar, com as políticas de assimilação previstas no Acto Colonial.

Em 1967, já alferes do Exército, fui para Angola, para a companhia de caçadores metropolitana que estava aquartelada na Quibala-Norte, pertencente ao batalhão sediado em Bessa Monteiro. Nesse aquartelamento, estava, ainda, um pelotão de artilharia destacado do Regimento de Artilharia de Luanda. Era uma pequena força da “guarnição normal”, designação que era dada às unidades que não vinham, de reforço, da Metrópole. Como seria de esperar, os vinte e poucos militares desse pelotão eram quase todos negros. Que me lembre, eram brancos o alferes, um furriel e dois operadores de transmissões. As praças da especialidade de artilharia, dadas as tecnicidades da arma, eram das mais qualificadas em habilitações literárias. Pelo menos dois dos cabos eram ‘regentes de posto de ensino’, uma categoria inferior de professor primário, que também existia na Metrópole. Para completar este conjunto de militares negros com qualificações acima da média, o segundo furriel, negro, era professor primário, diplomado pela Escola do Magistério Primário de Luanda.

No tempo em que decorre esta narrativa, havia, ainda, uma percentagem considerável de militares metropolitanos que eram analfabetos ou que, não o sendo, não tinham sido aprovados no exame da 3.ª classe. Estava estipulado por lei que nenhum militar poderia passar à disponibilidade sem, antes, ser aprovado no exame da 3.ª classe. Esta determinação ia acompanhada pela  obrigatoriedade de  todas  as  unidades militares  manterem  uma  “escola regimental”, destinada, precisamente, a preparar os militares para o referido exame.

Como o furriel de artilharia negro era o único professor primário existente naquele quartel, o capitão, muito naturalmente, nomeou-o professor dos militares brancos iletrados, missão na qual era coadjuvado pelos cabos angolanos regentes de posto de ensino.

Imaginem, agora, a minha surpresa, no contexto imperial em que vivíamos, quando, após o almoço de um dos primeiros dias da minha estada na Quibala-Norte, o capitão me disse para vir com ele dar uma volta pelo quartel. E lá fomos os dois. Quando chegámos próximo do edifício JC do refeitório, os meus olhos arregalaram-se ao ver, em pé, junto do quadro preto, o furriel  e  os  dois  cabos  angolanos,  a  ‘civilizarem’  uma  dezena  e  meia  de  militares metropolitanos. O  capitão,  apercebendo-se da  minha  surpresa,  disse  qualquer  coisa  deste género:  “tendo  eu  profissionais  do  ensino  na  companhia,  não  era  lógico  nomear  outro graduado, só por ele ser branco”.

Digeri muito bem o evento. Confesso que não tardei a sentir um grande orgulho, por tudo e por todos: pelo exemplo que (desta vez) se dava da concordância entre a propaganda e os factos reais; pela serena aceitação da situação da parte dos soldados brancos, reconhecendo que aqueles portugueses de cor os ensinavam porque estavam devidamente qualificados para o efeito. Ao longo dos anos, regressei mentalmente, por várias vezes, à escola regimental da Quibala-Norte. Imaginei que, provavelmente, uma cena deste tipo seria impossível noutros exércitos de países mais desenvolvidos.

Mas a experiência africana, em cenário de uma guerra sem fim, fez-me seguir a pista do 25 de Abril, no qual me empenhei de corpo e alma, por considerar que a guerra se não resolveria sem a prévia conquista da Liberdade. O doloroso processo que se seguiu no tocante à separação política das antigas colónias não pôs termo ao relacionamento amistoso de Portugal com os povos que anteriormente dominava. Muitos desses africanos vieram mesmo trabalhar para Portugal, alguns adquiriram a nacionalidade portuguesa e têm usado os seus direitos políticos na plenitude, elegendo e fazendo-se eleger. No actual governo, além do primeiro-ministro de ascendência indiana, há a ministra da Justiça, negra de origem angolana.

O que fica dito, no entanto, não pretende ser, nem é, um atestado de ausência de racismo. Melhor dizendo: da ausência de racistas. Em Portugal, há machistas, há fascistas, há egoístas, há comunistas, há racistas, etc., e, todavia, o país não merece, só por isso, ser considerado machista, fascista, egoísta, comunista ou racista. No entanto, nos últimos tempos, há quem esteja tentando descobrir mais uma  “causa fracturante”, para limar mais umas arestas da sociedade. Desta vez, porém, a questão vem bulir com a nossa História, com a nossa identidade como Nação e com a ideia de Pátria, como memória comum de todo um povo.

Neste movimento anti-racista, cuja intenção de aperfeiçoamento humano só podemos louvar, há uma linha de pensamento que se apoia num discurso perigoso, tendente a dar aos fenómenos de racismo – que existem, sem dúvida –, uma DIMENSÃO que não corresponde às características do povo português e que deve ser contrariada com a argumentação própria de uma  sociedade  democrática.  Portugal,  segundo  o  Índice  Global  da  Paz  de  2020,  foi classificado em 3.º lugar entre os países mais pacíficos do mundo, logo depois da Islândia e da Nova Zelândia. Teríamos conseguido tal classificação tendo, entre nós, um grave problema de racismo? Não é o racismo uma negação do conceito de sociedade pacífica?

Depois de várias posições, públicas e publicadas, que até nós chegaram nas últimas semanas, apareceu, agora, a ideia de que, para combater o nosso problema de racismo, precisamos de nos “descolonizar”. Foi autor desta argumentação o antropólogo Dr. Miguel Vale de Almeida, em artigo inserido na edição do Público de 18 de Agosto. Entre outras afirmações com o seu quê de original, o autor refere que “hoje sabemos, graças ao activismo anti-racista que conseguiu emergir e graças a boa investigação científica e jornalística, que o racismo existe inegavelmente”. Afirma, ainda, o articulista, que “alguns países souberam fazer, ou foram obrigados a fazer, um esforço no sentido de descolonizar as suas sociedades e de combater o racismo. Portugal tem sido imensamente incompetente nisso”. Curiosamente, NÃO DIZ quais foram esses países “competentes”. Quanto gostaria de saber quem são esses países exemplares!

E, então, Vale de Almeida encontra na sua experiência pessoal, a solução para este mal: “Mas têm sido sobretudo autores, artistas, académicos, activistas, políticas e políticos anti-racistas quem mais me têm ensinado, junto com a minha prática da antropologia, que Portugal ainda não se descolonizou”.

E, porque é que o autor estabelece a ligação do racismo à ideia colonial? Porque, segundo ele, “nada  mudou  verdadeiramente,  dos  livros  escolares  à  conversa  de  café.  Nem  sequer  o tremendo esforço de construção da democracia e duma sociedade mais justa veio substituir a estória que contamos sobre nós próprios. Não parece ser disto, da liberdade e da democracia, que  a  maioria  dos  portugueses  se  orgulha,  mas  sim,  e  ainda,  dos  “descobrimentos”,  da expansão e mesmo do colonialismo e seus avatares contemporâneos”.

Isto é, púnhamos o início da nossa memória colectiva em 25 de Abril de 1974 e mandávamos os Lusíadas para o caixote do lixo. NÃO, o 25 de Abril em que participei foi feito para honrar a memória dos que construíram Portugal, para honrar todos aqueles que deram o melhor do seu saber e das suas vidas para fazerem de um pequeno país periférico da Europa uma referência mundial, que nenhum preconceito tonto poderá apagar. O 25 de Abril fez-se, justamente, como mais um passo no sentido do aperfeiçoamento humano da sociedade portuguesa, aperfeiçoamento esse que deve continuar, sem que se subverta a ideia de Pátria que, assente no nosso passado, sustenta o nosso futuro.

David Martelo
(Coronel Ref. do Exército Português)
19 de Agosto de 2020

 

COMENTÁRIO AO ARTIGO «PORTUGAL PRECISA DE SE DESCOLONIZAR?»

O Coronel David Martelo, meu caro camarada de armas, escreveu recentemente um texto pertinente que junto em anexo, intitulado «Portugal Precisa de se Descolonizar?», que tem tido uma divulgação e aceitação alargada. Permito-me um breve comentário amigável que só será entendível depois da leitura do texto referido.

Tenho pelo Coronel Martelo elevada estima e consideração, pois tenho-o como um bom militar, cidadão exemplar e escritor/historiador, de grande mérito.

O texto de grande actualidade está bem escrito, até de uma forma tocante.

Enforma, porém e «à mon avis», de três erros que o desvirtuam e de alguma forma entram em contradição com o fio condutor e objectivo do escrito.

O primeiro é o de que o fim da guerra (como o seu início…) nada teve a ver com a «Liberdade», seja lá que significado se lhe queira atribuir. Tal ideia é absolutamente marginal à questão.

A segunda é afirmar que um dos objectivos do 25 de Abril era para «honrar a memória dos que construíram Portugal…» e o que lhe está subjacente relativamente à manutenção de lusitanidade relativamente às «ex-colónias», como é referido.

Ora tal também não teve quase nada a ver com o que se passou, a não ser na mente de Spínola e dos «spinolistas» (ou de um ou outro dos chamados «puros»), quando aquele escreveu (ou alguém por ele) o celebre livro que acelerou a «rendição» do governo de então. Tese requentada e rapidamente diluída e ultrapassada – diria, tragada – no meio da anarquia que entretanto se gerou.

Acontece que esta anarquia tem responsáveis (até hoje pouco apontados e que nunca sofreram por isso). Resultou num desastre espantoso: a maior e mais vergonhosa derrota politica e militar de toda a nossa História, acompanhada de uma redução e menorização geopolítica e geoestratégica catastrófica.

Finalmente, o autor considera, embora subtilmente é certo, que aqueles que defendem as actuais teses revisionistas sobre o racismo em Portugal têm na sua génese e objectivos «limar mais umas arestas da sociedade». Ora a mim parece-me exactamente o contrário. «Eles» não estão interessados em melhorar nada, mas sim em subverter e destruir a sociedade tal como a temos, fazendo tábua rasa da História. E é nesta perspectiva que devem ser denunciados.

O que se aplica ao tal Dr. Vale de Almeida, personalidade mais do que conhecida e a quem se devia perguntar se não será ele que se devia «descolonizar» a ele próprio. E tratar-se.

Branquear (ou interpretar erradamente) factos de um passado recente ou atribuir falsas ideias ou intenções a quem não as tem é, no mínimo, uma ingenuidade. E pode acabar por fazer mais mal que bem.

Saudações cordiais,

João José Brandão Ferreira
Oficial Piloto Aviador (Ref.)
20/08/2020

 



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