Arautos d'El-Rei | Como avança a ignorância…
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Como avança a ignorância…

São Paulo, Brasil – Do nosso correspondente Armando Alexandre dos Santos

Ainda persistem, embora com força cada vez menor, numerosos preconceitos contra a Idade Média. Ela cada vez menos é apresentada como “a era das trevas” ou “a longa noite de mil anos”, modos pelos quais gerações sucessivas de estudantes aprenderam a considerá-la. Mas ainda persistem tais ideias no senso comum de muita gente. Felizmente, estudos sérios vão cada vez mais fazendo luz a respeito do Medievo.

A condição da mulher na Idade Média, por exemplo, era muito diferente do que se imagina. Estudos bem documentados da historiadora francesa Régine Pernoud o demonstram. Os avanços técnicos e as invenções foram dignos de nota, contrariamente à visão imobilista que se tem da Idade Média. Havia, nessa era histórica, considerável preocupação com a limpeza corporal e grande difusão de banhos públicos; diferentemente do que se supõe, a despreocupação com a limpeza física, que se notava em muitas partes da Europa até há bem pouco tempo, não provinha do Medievo, mas de costumes novos que irromperam durante o Renascimento e se acentuaram durante o Antigo Regime.

A abertura das fontes documentais, facilitadas hoje em dia pelos processos de digitalização dos arquivos e sua divulgação pela Internet, permite augurar que, cada vez mais, se vá dissipando essa verdadeira cortina de fumaça em torno da Idade Média. De qualquer forma, é certo que ainda persiste em nossos dias, e em alto grau, certo preconceito de cunho ideológico em relação à Igreja Católica e a sua influência na Idade Média, conforme observou o professor norte-americano Thomas Woods Jr., no seu excelente livro Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (São Paulo: Quadrante, 2008): “Philip Jenkins, distinto professor de História e Estudos Religiosos da Universidade do Estado da Pennsylvania, designou o anticatolicismo como o último preconceito aceitável na América, uma apreciação que dificilmente pode ser posta em causa. Com efeito, quando se trata de ridicularizar ou de parodiar a Igreja Católica, poucas coisas são consideradas excessivas pelos meios de comunicação e pela cultura popular americana.” (op. cit., p. 7)

Essa observação, que Woods Jr. faz no tocante aos Estados Unidos, é facilmente confirmável em outras partes do mundo. Um exemplo entre muitos outros: em 2008 foi lançada no Brasil pelo Grupo Editorial Ediouro, em parceria com uma importante rede publicitária americana, uma revista destinada ao grande público, intitulada Scientific American História. O primeiro número da nova publicação tinha como tema geral “A ciência na Idade Média” e estampava na capa um chamativo dístico com estas palavras: “Um surpreendente panorama da extraordinária riqueza da produção científica medieval”. O conteúdo da revista, de alto nível intelectual e muito bem redigido por professores universitários de vários países da Europa, documentava grandes progressos ocorridos na Idade Média, nos mais diversos campos do conhecimento humano. A leitura atenta da revista mostra que, na sua grande maioria, esses progressos se deram em mosteiros ou em ambientes fortemente influenciados pela Igreja Católica. Muitos dos precursores e inventores medievais eram religiosos ou pessoas estreitamente ligadas à Igreja. Sem embargo dessa fácil constatação, o texto de apresentação da revista, assinado por sua editora, começava com as seguintes palavras: “Luzes na idade das trevas – O velho paradigma de denominar o período medieval como a idade das trevas está aos poucos se desfazendo. Historiadores já demonstraram que, apesar da forte influência da Igreja, as pessoas arrumavam modos de driblar o obscurantismo para ter uma vida mais justa.”

Ainda nesta semana, podemos encontrar outro exemplo protuberante de preconceito antimedieval e antirreligioso, acompanhado de imensa dose de ignorância histórica. Em matéria editorial intitulada “O avanço da ignorância”, a revista “Veja” estampou o seguinte trecho: “Ao contrário do senso comum de que evoluímos sempre numa linha reta, a história da humanidade registra diversos momentos de regressão. Conhecimentos sobre arquitetura, por exemplo, ficaram esquecidos por mais de um milênio. Durante o reinado do imperador Augusto, no século I a.C., o cônsul Marco Agrippa encomendou a construção do Panteão em Roma, com seu teto erigido em forma arredondada. Tal obra de engenharia, muito comum nas edificações romanas, só foi repetida em 1436 no domo da Igreja Santa Maria del Fiore, em Florença, por Filippo Brunelleschi. Entre um fato e outro, a civilização ocidental viveu o período conhecido como Idade das Trevas, quando a Igreja Católica, poder vigente na época, queimava pessoas e censurava o conhecimento.” (edição de 18/9/2019, p. 12)

O redator desse infeliz texto ignora que, ao longo da Idade Média, incontáveis cúpulas arredondadas, de dimensões muito diversas, foram edificadas em toda a Europa. Ignora também que a arquitetura medieval não apenas deu continuidade ao estilo clássico, aprimorando-o no chamado estilo românico, mas também foi capaz de criar um estilo novo, altamente sofisticado do ponto de vista técnico, que foi o gótico, no qual o arco arredondado antigo foi substituído pelo ogival. Essa substituição, aliada aos arcos botantes (outra inovação medieval!) e ao alívio do peso das paredes, permitiu que as construções se tornassem muito mais altas e tivessem menos pedras na sua estrutura de sustentação, possibilitando assim a entrada de muita luz pelos vitrais…

“Veja” tem toda a razão: realmente está avançando a ignorância…

Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.


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