Arautos d'El-Rei | Exposição de motivos contra o Acordo Ortográfico
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Exposição de motivos contra o Acordo Ortográfico

O Acordo Ortográfico de 1990 não veio resolver problema algum, já que nunca se verificou a mais ínfima dificuldade decorrente da existência de duas grafias oficiais da Língua Portuguesa, sendo a sua entrada em vigor, pelo contrário, e essa sim, fonte geradora de problemas, provocando confusão e conflitualidade sociais, com evidente e patente desequilíbrio no binómio custos/benefícios quanto à sua entrada em vigor.


No pressuposto de que as leis da República têm por finalidades a defesa dos interesses e a regulação das relações entre os cidadãos que são parte integrante e a própria razão de ser dessa mesma República, caberá a estes exercer os seus direitos de cidadania, nomeadamente através de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC), caso considerem que houve prejuízo para os seus interesses colectivos ou que foram afectadas as relações entre os indivíduos e/ou entre os grupos sociais.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO), tendo atravessado um longo processo, não apenas legislativo como de discussão pública (que de facto nunca existiu), durante mais de 19 anos, e tendo por fim entrado oficialmente em vigor no passado dia 1 de Janeiro, por força do determinado na Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de Julho, veio criar na sociedade portuguesa uma situação de total indefinição, não colhendo receptividade por parte de largos estratos da população e nem mesmo por parte das estruturas e serviços do Estado, salvo raras e pontuais excepções. Ou seja, e mesmo considerando que a entrada em vigor do referido Acordo Ortográfico prevê um período de implementação de seis anos, verifica-se, na prática, o geral incumprimento de uma lei da República, sendo que tanto os organismos e serviços desta como os cidadãos que a corporizam se limitam, por regra, a pura e simplesmente ignorá-la.
As generalizadas e sistemáticas resistências ao cumprimento daquilo que determina a lei indiciam, no mínimo, e plenamente comprovam, no máximo, que a entrada em vigor deste Acordo Ortográfico foi precipitada, por um lado, e que, por outro, não serve esta mesma lei da República a res publica cujos interesses deveria defender e servir.
O Acordo Ortográfico de 1990 não veio resolver problema algum, já que nunca se verificou a mais ínfima dificuldade decorrente da existência de duas grafias oficiais da Língua Portuguesa, sendo a sua entrada em vigor, pelo contrário, e essa sim, fonte geradora de problemas, provocando confusão e conflitualidade sociais, com evidente e patente desequilíbrio no binómio custos/benefícios quanto à sua entrada em vigor.
O que está em causa, fundamentalmente, é a defesa do interesse público, já que é de património nacional que falamos quando falamos da Língua Portuguesa e, por conseguinte, trata-se de uma questão de interesse nacional – que não deve nem pode ser confundido com quaisquer outros interesses –, o qual o Estado português não quis ou não soube salvaguardar.
Verificando-se que a aceitação não é nem pacífica nem são as suas directrizes acatadas pela esmagadora maioria da população, outra solução não restará se não arrepiar caminho, remover a fonte dos conflitos e eliminar a causa da indefinição, potencial geradora de verdadeiro caos social. Ou seja, e pelo exposto, não restará outra solução que não seja a de revogar de imediato a Resolução da Assembleia da República que determina a entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990.

I. As razões da necessidade de revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008

 

1. Razões sociais
São públicas e manifestas as profundas discordâncias entre os defensores do Acordo Ortográfico e os seus opositores, não tendo existido, porém, para sustentar uma ou outra posição, qualquer estudo prévio sobre o impacto socioeconómico desse Acordo; não existem quaisquer dados oficiais que permitam aferir em que medida a população portuguesa o apoia ou rejeita, como não se conhecem quaisquer estudos de impacto económico sobre a sua efectivação ou sequer uma simples estimativa dos custos associados à respectiva entrada em vigor.
Verifica-se, no entanto, que a sociedade civil se sobrepôs neste particular às obrigações do Estado, em especial no ano imediatamente antecedente à referida entrada em vigor do AO, isto é, em 2009, e também, de forma ainda mais acentuada, desde o passado dia 1 de Janeiro.
Um estudo de opinião publicado pelo jornal Correio da Manhã, em 18/03/09, referia que uma percentagem de 31,4% da amostra nunca sequer “ouviu falar” do Acordo Ortográfico; dos restantes inquiridos, 57,3% estavam contra e apenas 30,1% a favor.
Uma Petição intitulada Manifesto Em Defesa da Língua Portuguesa, cujos primeiros subscritores foram, entre outros, o historiador Vasco Graça Moura, a linguista Maria Alzira Seixo e a deputada Zita Seabra, foi entregue (subscrita por mais de 32.000 cidadãos) e discutida em sede parlamentar. Este mesmo documento continua ainda hoje a recolher assinaturas, aproximando-se neste momento dos 130.000 subscritores; e isto apenas decorrendo em meio electrónico e virtual, o que é ainda mais significativo.
Aliás, o próprio movimento que deu origem à presente ILC teve a sua origem em ambiente virtual, através das chamadas “redes sociais”, o que não representou qualquer obstáculo a que largas dezenas de milhar de cidadãos a ele se tenham juntado, subscrevendo a sua página de intenções.
A nível de imprensa escrita, verifica-se que apenas alguns dos jornais nacionais de grande circulação aderiram ao AO ou manifestaram a intenção de o vir a adoptar a curto prazo. Apesar de a agência estatal de notícias (Lusa) o ter adoptado, obviamente por ordem da tutela, a partir do dia 1 de Janeiro, a própria edição do Diário da República ainda é publicada segundo a norma actual, a geral e comummente aceite.
A suspensão dos programas de Língua Portuguesa dos níveis de ensino Básico e Secundário (cf. Portaria 114/2010, de 25 de Fevereiro), por parte do Ministério da Educação, implica na prática não estar também a ser aplicado o AO nesta área fundamental.
Por fim, e se bem que não seja tecnicamente possível quantificar tal facto, verifica-se que a população em geral – grande parte da qual, repita-se, nunca sequer “ouviu falar” do AO – se recusa a adoptar qualquer espécie de “inovação”, continuando a escrever (e jurando que o fará até ao fim dos seus dias) segundo aprendeu, sabe e quer.
Existe uma evidente conflitualidade, potencial e, em alguns sectores, já expressa, resultante da entrada em vigor deste Acordo, opondo entre si – por exemplo – os pais aos seus próprios filhos, os empregados aos empregadores ou os autores aos seus leitores e editoras. E existe também uma clivagem social mais do que patente entre aqueles que são a favor e os que estão contra a “grafia unificada”, com todas as tensões sociais daí resultantes; vai perpassando por toda a estrutura social uma situação de tal e tão geral crispação que se poderá mesmo temer pela ocorrência de situações em que o conflito deixe de estar apenas latente entre todos e passe a condicionar de forma muito adversa a relação entre os cidadãos, o que, a suceder, perverte por inteiro o sentido, o significado e a finalidade de qualquer lei (ou, de resto, de qualquer legislador), ou seja, prover às necessidades e ao bem-estar da população que teoricamente serve.
É este o extraordinário contra-senso, o incrível paradoxo que a entrada em vigor de semelhante documento “alcança”: não apenas veio “resolver” um problema que nunca existiu como, ainda por cima, põe uns contra os outros os mesmos cidadãos que, pretensamente, iriam beneficiar com o seu usufruto.

2. Razões políticas
A Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de Julho, estabelece um prazo de seis anos (cf. Art.º 2º, nº 2) para que «a ortografia constante de novos actos, normas, orientações, documentos ou de bens referidos no número anterior ou que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou de qualquer outra forma de modificação, independentemente do seu suporte, deve conformar-se às disposições do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa».
Na mesma Resolução se estabelece (cf. Art.º 5º, ponto 3) que «o presente Protocolo Modificativo entrará em vigor no 1.º dia do mês seguinte à data em que três Estados membros da CPLP tenham depositado, junto da República Portuguesa, os respectivos instrumentos de ratificação ou documentos equivalentes que os vinculem ao Protocolo.»
Do que resulta, portanto, que em Portugal, nação soberana, entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010 o Acordo Ortográfico de 1990, com um prazo de seis anos para a sua total implementação, sendo que essa entrada em vigor foi automaticamente determinada pelo depósito dos instrumentos de ratificação de três outros Estados, também eles soberanos, e não através de um qualquer acto de exercício de soberania pelo próprio Estado português.
Ou seja, e em suma, temos que vigora em Portugal uma lei imposta por Estados estrangeiros e que resulta em exclusivo de um expediente de formulação, já que esta foi alterada do primeiro para o segundo Protocolo Modificativo. Ora, isto vem contrariar flagrantemente, como parece por demais evidente, o espírito, a forma e a letra da própria Constituição da República Portuguesa (CRP), em que se reclama e afirma a soberania nacional, a defesa da identidade e do património nacionais e o estabelecimento de um Estado de direito democrático, sendo que neste, por definição, os cidadãos devem ser consultados em tudo o que diga respeito àqueles pilares fundamentais, à sua personalidade enquanto povo, ao seu legado histórico milenar e aos direitos sobre os valores intemporais e imateriais que enquanto tal definem esse mesmo povo.
E outro tanto vale, segundo a mesma lógica de entendimento do Direito Internacional (Art.º 8º da CRP), para os demais países envolvidos, nomeadamente os restantes membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Portugal não pode, subscrevendo um Tratado, forçar a respectiva entrada em vigor em países terceiros.
Acresce que nunca, mesmo tratando-se de matéria tão sensível no que respeita à defesa da identidade e do interesse nacionais, o povo português foi chamado a pronunciar-se, fosse por via referendária ou outra, não tendo mesmo sido ouvidos sequer os sectores socioprofissionais ligados às questões directamente pertinentes, como, por exemplo, na área da Educação, os estudantes e os professores, ou em outras áreas do Saber e da Cultura, profissionais ou profissões que da Língua dependem e com a Língua trabalham, como, também por exemplo, os escritores, os jornalistas ou os tradutores.
E acresce ainda que a passagem de oito (todos) para apenas três Estados da CPLP subscritores, do primeiro (cf. Resolução da Assembleia da República nº 26/91, de 4 de Junho) para o segundo Protocolo Modificativo, como número suficiente para que o AO entrasse em vigor em Portugal, não só cerceia os direitos do Estado Português, cuja autonomia é, deste modo, posta em causa, como ilustra o carácter político, temporalmente marcado, que o processo legislativo atinente sofreu, quando de matéria muito mais abrangente e intemporal se tratava. E viola também, flagrantemente, até porque se tratou de mero expediente formal, o nº 2 do Art.º 8º da Constituição, o que seria motivo mais do que suficiente para a sua anulação automática, por inconstitucionalidade, caso tivesse sido pedida a respectiva fiscalização em sede apropriada.
Num Estado de direito democrático, as maiorias parlamentares fazem-se e desfazem-se, os Governos formam-se e são substituídos, o sentido de voto dos eleitores e o dos próprios deputados muda de acordo com o momento e com as circunstâncias em que é exercido. O que não muda, a não ser pela natural e inexorável passagem do tempo, aquilo que é perene e que nos foi legado, sendo, por conseguinte, nosso dever passar às gerações seguintes o mais possível intocado, é o nosso património cultural, a base verdadeira de toda a nossa identidade colectiva, ou seja, numa palavra, a nossa Língua. Os valores fundamentais de uma Nação não se mudam por decreto.
De resto, teria sido isso mesmo que o legislador deveria ter acautelado, já que o carácter da Língua Portuguesa enquanto património cultural está devidamente protegido pela Constituição da República, conforme previsto no Art.º 9º, alíneas e) e f) e no Art.º 78º, alíneas c) e d).
Note-se ainda que os dois maiores Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), isto é, Angola e Moçambique, não ratificaram o AO nem apresentam qualquer previsão para a sua implementação. Ou seja, a putativa “ortografia unificada” em todo o espaço lusófono está assim desde já comprometida e inviabilizada, de facto e de jure, com a agravante de se ir cavando por isso mesmo, cada vez mais, o fosso entre as duas normas ortográficas existentes. O que significa, evidentemente, ter a pretensão de “unificação” um efeito prático rigorosamente inverso.

3. Razões económicas
O adiamento para o ano lectivo de 2011/2012 dos novos programas de Língua Portuguesa, referente aos níveis Básico e Secundário, é um óbvio indício de que as estruturas educativas não estavam nem estão preparadas para a entrada em vigor do AO e um claro sinal político de que o próprio Governo não sabe o que fazer com o dito, ao certo, de tal forma a sua aplicação se revela… impraticável.
Não resulta claro, porque tal não é referido nas respectivas motivações, se este adiamento foi decidido com base nos custos previsíveis envolvidos (novas edições de manuais, formação de professores, etc.), de mais a mais tendo-se em atenção a situação económica de grave crise vigente, mas parece evidente que o factor económico terá influenciado a decisão política. E isto comprova, e por maioria de razões quando é o próprio Estado a tomar a iniciativa do adiamento, a absoluta necessidade, a urgência extrema da tomada de medidas que impeçam a sangria de recursos e o acréscimo de despesas que a implementação do AO inevitavelmente provocou já e que poderia continuar a provocar caso não fosse revogada.
Ainda é possível, por conseguinte, evitar essa sangria e esse acréscimo, ou seja, inviabilizar sem quaisquer encargos acrescidos, bem pelo contrário, os custos associados à inopinada, precipitada e ilegítima entrada em vigor deste Acordo, custos esses cujas repercussões são já sensíveis, atravessando todo o tecido social e nomeadamente no que ao sector estrutural do Ensino diz respeito.
Se bem que não haja nem nunca tenha sido feito qualquer estudo sobre o impacto económico previsível, são por demais evidentes os efeitos devastadores de semelhante precipitação, a todos os níveis e em todas as áreas profissionais, desde a simples edição de manuais escolares à completa ruína de sectores profissionais inteiros como, por exemplo, os tradutores independentes e os pequenos editores, passando pela eliminação e substituição de milhões de livros, impressos e dísticos em todas as repartições e serviços da Administração Pública.
Seria fastidioso e redundante enumerar todas as outras profissões directamente afectadas pelo AO, além dos já referidos editores, livreiros e tradutores, mas não esqueçamos todos aqueles profissionais cujos legítimos e mais básicos interesses não foram minimamente acautelados, como os revisores e operadores de texto, os bibliotecários e arquivistas, os publicitários e locutores ou, de forma geral, todos aqueles profissionais directamente ligados à Língua ou à palavra escrita.
Por outro lado, além do profundo abalo económico e social provocado em diversos estratos profissionais e dos custos associados a uma implementação onerosa e complexa, para não dizer impossível, haveria ainda que ter em atenção as necessidades e custos de formação que este Acordo, mais uma vez paradoxalmente, acarreta. Perdido o rasto aos milhões de Euros já gastos em acções de formação de reciclagem de professores e de jornalistas, apenas para dar dois exemplos, evitar que prossiga uma sangria do erário público – tão redundante quanto astronómica – apresenta-se como evidente imperativo nacional, por um lado, e por outro vem comprovar também o carácter faraónico desta impossível empreitada: pois não era precisamente a “facilidade” da “uniformização da Língua” um dos pretextos para a sua adopção? Então, se seria tão fácil essa “uniformização”, para que servem ou porque haverá necessidade de acções de formação ou de reciclagem?
Em termos económicos, a implementação do AO revela-se um desperdício inqualificável. O que fazer com todo o material bibliográfico existente? O que fazer com a coexistência de novas edições (por exemplo, de manuais escolares) face às que ainda se encontram no mercado? O que fazer com os milhares de impressos oficiais e não oficiais? O que fazer com todas as placas de serviços, documentação, legendas de filmes, etc?
Substituir todo este material, seja num, seja em vários anos, é um desperdício inconsciente de economias num período em que, ainda por cima, os apelos à contenção de gastos (públicos e privados) são uma constante.
Quanto à formação de professores: por que razão este “investimento” num AO sem sentido quando as estruturas educativas apresentam outras prioridades, como sejam, por exemplo, o investimento na área da Segurança Social e na segurança ela mesma?
E, quanto ao resto, o que fazer com as várias classes profissionais que ficam “reféns” de uma concorrência mais directa – e desleal – com o (e do) mercado brasileiro?

4. Razões técnicas

Esta ILC justifica-se na medida em que, acreditam os seus subscritores, a revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 trará benefícios para a defesa da identidade nacional, posto que a ortografia – e o código linguístico em geral – é uma das matrizes de um povo, conforme referimos anteriormente. E porque consideramos que essa matriz não deve ser alterada por um conjunto de normas confusas, discutíveis e que entre si se revelam contraditórias, e no geral se fundamentam em objectivos utópicos, como seja o de uma pretensa “unificação ortográfica” entre os países da CPLP.
A Língua Portuguesa é actualizada de modos diversos, consoante os países que a utilizam como língua oficial – e, mesmo, considerando as diferentes regiões desses países. O direito à manutenção das características próprias do falar/escrever de cada nação deve ser salvaguardado, posto que são identitárias de cada uma delas.
A implementação deste AO é, ela própria, incompatível com a uniformização ortográfica que preconiza, visto o texto que o enquadra revelar ambivalências e permitir duplas grafias consoante o país que utiliza a Língua. Logo, a incoerência entre os princípios – os ditos objectivos gerais, as intenções que conduziram à elaboração deste AO – e a prática, ou seja, as excepções previstas, as ditas “grafias alternativas admissíveis” (como, por exemplo, ‘topónimo’/‘topônimo’, ‘sumptuoso’/‘suntuoso’ ou ‘fato’/‘facto’ ou, transcrevendo excertos da Base IX, 4, “É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo”) são notórias e invalidam, logo à partida, a tão propalada “unificação ortográfica”.
Outro argumento que não convence tem a ver com a “simplificação ortográfica” (aproximando a grafia da oralidade), mediante a eliminação das ditas consoantes mudas. Ora, a ser verdadeira esta intenção, é incompreensível que se mantenham os H em início de palavras (como em ‘haver’ ou ‘hélice’, por exemplo) ou, que numa acepção ainda mais lata, se preveja a manutenção de vogais “impronunciadas” (como seja o U das palavras “que” ou “adquirido”, por exemplo). Neste contexto, e em suma: o que este AO propõe é uma simplificação apenas parcial e, por isso mesmo, arbitrária e incoerente à luz dos princípios que defende.
É também evidente que, na prática, o argumento que postula a “unificação” do Português como instrumento a utilizar nos fora internacionais não procede, na medida em que não só é reconhecida por este AO a dupla grafia, como, em termos lexicais, as diferenças que existem no seio da CPLP não permitem a adopção de uma “língua única” (a título de exemplo, veja-se como as designações ‘autocarro’/‘machimbombo’/‘ónibus’ ilustram essa salutar diversidade lexical).
Há ainda a referir as flagrantes contradições que se revelam na conservação ou não das raízes etimológicas dos vocábulos. Se, por um lado, o étimo é o pretexto para a manutenção de algumas consoantes (ver, como exemplo, AO, Base II, 1, a: “por força da etimologia”), por outro a esmagadora maioria das alterações propostas elimina, em nome da simplificação e aproximação à oralidade, essa matriz vocabular (tal sucede, por exemplo, com a eliminação do C em ‘ator’ ou do P em ‘adoção’).
De referir também que, se o objectivo era “uniformizar”, tanto as inúmeras “facultatividades” como as indeterminações que perpassam por todo o texto do AO constituem em si mesmas a negação total do próprio conceito de “ortografia”. A dupla grafia, cavalo de batalha que o Acordo pretendia definitivamente abater, não apenas se mantém como, pasme-se, estão no dito Acordo previstos vários casos de palavras (lexemas) em que se introduzem duplas grafias antes inexistentes!
Uma outra particularidade que também, a par das tantas já enumeradas, ilustra a demagogia deste AO tem a ver com a ordem sintáctica dos elementos nas orações/frases, particularmente as chamadas posições clíticas. Se bem que ortografia e sintaxe sejam “ciências” distintas, num entendimento mais abrangente é lícito relacionar essa ordenação com o conceito de escrita (mais ou menos) correcta e, logo, com ortografia. Ora, o facto é que a colocação dos pronomes oblíquos átonos é diferente no Brasil e em Portugal; enquanto o Brasil prefere o uso da próclise (pronome antes do verbo, como em “te observar”) e praticamente nunca recorre à mesóclise (pronome colocado no meio do verbo, como em “observar-te-ei”), em Portugal esta é a fórmula adoptada e, ao invés da próclise, usa-se a ênclise (“observar-te”). Sendo assim, a dualidade que se verifica não permite um modo único de grafar os textos ou, como se pode depreender, disto resulta, numa acepção mais lata, a vigência (também aqui) de uma dupla ortografia – o que é incompatível com um projecto que reclama e proclama a “unificação ortográfica”.
A posição cuidadosa adoptada por Angola, que ainda não ratificou o AO, é um forte indício – ou mesmo a comprovação – de que este Acordo enferma de outra deficiência: o não ser abrangente. O imediatismo e a pressa com que foi gizado não contemplou outros “falares” ou “variantes” do Português” (neste caso, o Português que se fala e escreve em Angola) – ou, pelo menos, fê-lo de forma incompleta. Torna-se assim fácil constatar, por conseguinte, que este é um projecto condenado ao fracasso porque, também neste caso, ele é inconsistente. E daqui poderá advir, em última análise, uma situação caricata: Angola e Moçambique (que também ainda não ratificou o AO) continuariam a usar o Português Europeu enquanto Portugal “adotaria” uma putativa e inexistente “norma brasileira”, através de um bizarro processo de contaminação e descaracterização da sua matriz original.
De resto, o facto de a “uniformização ortográfica” ser uma total impossibilidade técnica está expresso no próprio texto do Acordo Ortográfico. A respectiva Nota Explicativa (cf. “Sistema de acentuação gráfica”) o diz taxativamente:
«2.4 Avaliação estatística dos casos de dupla acentuação gráfica
Tendo em conta o levantamento estatístico que se fez na Academia das Ciências de Lisboa, com base no já referido corpus de cerca de 110 000 palavras do vocabulário geral da língua, verificou-se que os citados casos de dupla acentuação gráfica abrangiam aproximadamente 1,27 % (cerca de 1400 palavras). Considerando que tais casos se encontram perfeitamente delimitados, como se referiu atrás, sendo assim possível enunciar a regra de aplicação, optou-se por fixar a dupla acentuação gráfica como a solução menos onerosa para a unificação ortográfica da língua portuguesa.
Temos, portanto, que no mesmo documento oficial se advoga a “unificação ortográfica”, ou seja, a eliminação da dupla grafia como objectivo primordial, mas com a “ressalva” de essa mesma dupla grafia não apenas se manter (e não só no caso da acentuação mas também nos das chamadas consoantes mudas e no da maiusculização) como, ainda por cima, a dupla grafia se poderá multiplicar até ao infinito, isto é, até onde permitam as “facultatividades” previstas no Acordo. E também se reconhece, nesta extraordinária Nota Explicativa, que se optou por uma “solução menos onerosa”, o que, se não quantifica o montante total do ónus em causa, pelo menos dá-nos uma pista sobre o facto de, afinal, a dita “unificação” ter os seus custos… e não tão poucos quanto isso.

Em conclusão
:
1) Só uma tomada de posição clara do legislador no sentido de revogar a Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de Julho, pode pôr cobro à situação de indefinição, crispação social e generalizada desobediência que actualmente se vive;
2) A revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 não acarretará implicações sociais ou custos de qualquer espécie sendo, bem pelo contrário, uma forma objectiva e concreta de evitar uns e outros, tanto ao Estado como à própria sociedade civil, isto é, aos contribuintes que aquele suportam e constituem.

II. A posição da sociedade civil quanto à entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990

O Acordo Ortográfico nunca foi uma questão pacífica, o que é sobejamente atestado pelo facto de – mesmo sem alguma vez ter existido um verdadeiro debate público sobre a matéria – terem já decorrido 19 anos desde que foi primeiramente assinado.
Este é, sem qualquer dúvida, um tema que divide a sociedade portuguesa. Curioso paradoxo, aliás, já que é o seu carácter pretensamente consensual e facilitador aquilo que mais advogam os seus defensores. E essa divisão nota-se perfeitamente, em artigos de opinião e nas mais diversas iniciativas de cidadãos, já que existe uma generalizada perplexidade quanto à forma “fácil” como decorreu o processo legislativo que levou à aprovação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008… com apenas 4 (quatro) votos contra.
A verdade é que o povo português não foi minimamente consultado nesta questão, sendo que é esse mesmo povo o principal interessado na dita e é também a ele mesmo que pertence a última palavra sobre todas as questões que digam respeito ao património e à identidade nacional.
E não apenas a opinião da população em geral foi soberanamente desprezada; também foram ignorados todos os pareceres das diversas entidades que sem qualquer hesitação condenaram o Acordo, no espírito, na forma e no conteúdo.
Destes insuspeitos e descomprometidos pareceres, todos desfavoráveis, destaquemos apenas dois, cada qual com citações esclarecedoras quanto à clara rejeição do referido Acordo:
a) Parecer da Associação Portuguesa de Linguística
«Não tendo o Acordo Ortográfico de 1990 (…) sido objecto de análise técnica rigorosa por parte da comunidade científica, parece-nos prudente suspender quaisquer actos que tornem irreversível a sua aprovação pelo Governo Português, nomeadamente, os que conduzam à ratificação dos dois Protocolos Modificativos de 1998 e de 2004.»
«A adesão ao Protocolo Modificativo de 2004 criaria uma situação de não uniformização da ortografia da língua portuguesa entre Portugal e Angola e Moçambique, países cujo número de falantes do português como língua materna e como língua segunda tem crescido notavelmente, e nas relações com os quais a questão ortográfica nunca se colocou.»
«(…) a Associação Portuguesa de Linguística recomenda: 1. Que seja de imediato suspenso o processo em curso, até uma reavaliação, em termos de política geral, linguística, cultural e educativa, das vantagens e custos da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990. 2. Que, a manter-se o texto actual do Acordo, Portugal não ratifique o Segundo Protocolo Modificativo.»
b) Parecer da Direcção-Geral dos Ensinos Básico e Secundário
«Há acordos assináveis, sem grandes problemas e há outros que são de não assinar. O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, uma simples consagração de desacordos.»
«(…) incúria e má-fé no processo de negociação do Acordo»
Estes pareceres, entre outros, foram não apenas ignorados como totalmente ocultados da opinião pública até 2008, isto é, estiveram “desaparecidos” nos 3 ou 4 anos imediatamente seguintes a terem sido produzidos. Não foram discutidos em nenhuma instância governamental ou parlamentar. À excepção de todos estes pareceres contra, houve um único a favor do AO (o da Academia das Ciências de Lisboa), que, por “coincidência”, foi produzido por um dos autores do… mesmo AO.
Assim como, por definição, qualquer acordo pressupõe cedências e compromissos de ambas ou de todas as partes envolvidas, o que não é de todo o caso deste, também estranho seria se o autor do dito (e um dos seus principais mentores) emitisse um parecer negativo a respeito da sua própria “obra”.
Temos, portanto, em suma, que o Acordo Ortográfico entrou em vigor no nosso país através de um processo exclusivamente político, resultando apenas de compromissos estabelecidos segundo estratégias político-partidárias dos deputados da Nação e sem qualquer auscultação ou – muito menos – intervenção das forças sociais ou, simplesmente, do povo, dessa mesma Nação que os deputados pelo menos teoricamente representam.

III. O Relatório da Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da República sobre a Petição/Manifesto contra o Acordo Ortográfico

Na sequência de uma iniciativa da chamada “sociedade civil”, concretizada através do “Manifesto Em Defesa da Língua Portuguesa, Contra o Acordo Ortográfico”, foi entregue na Assembleia da República uma petição subscrita por 32.000 cidadãos. Esta petição foi apreciada pela Comissão de Ética, Sociedade e Cultura, que emitiu um relatório (datado de 08/04/09) recomendando, nomeadamente, que «as preocupações e os alertas dos peticionários devem ser tidos em conta, do ponto de vista técnico e político, a curto e a médio prazo.»
Não consta que esta recomendação tenha sido acatada ou que, de resto, tenha produzido o mais pequeno efeito prático; o texto do AO não foi alterado numa única vírgula.
Mais preconizava este mesmo relatório que «o Governo deveria promover e valorizar, ao longo de todo o processo de aplicação do acordo ortográfico, a colaboração e parecer da comunidade científica e demais sectores cujo conhecimento ou actividade são de inegável utilidade.»
Que se saiba, o Governo não promoveu coisa nenhuma do que se recomendava e não foi pedido a sector algum qualquer espécie de colaboração ou parecer; pura e simplesmente, o AO lá continuou – mudo e imutável.
Adianta-se ainda, no mesmo relatório, que «a reacção da comunidade científica e educativa (…) é preocupante e evidencia a falta de diálogo e a ausência de uma metodologia por parte do Ministério da Educação e do Ministério da Cultura com vista à aplicação do Acordo Ortográfico.»
Do que facilmente se conclui, por conseguinte, que não terá sido por falta de interesse da sociedade civil na questão ou por falta de recomendação dos seus representantes no Parlamento que o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação continuaram cegos perante qualquer evidência, surdos a todos os protestos e mudos para qualquer espécie de “diálogo”.
Uma observação do deputado relator, Feliciano Barreiras Duarte, merece especial destaque, em especial se tivermos em atenção que este relatório foi aprovado por unanimidade pela respectiva Comissão:
«A pressa parece ter sido mais uma vez inimiga do bom senso. É que após a sua aprovação jurídico-constitucional pouco ou nada se avançou na sua aplicação e operacionalização em Portugal. Com a agravante de as contradições por parte do Ministério (sobretudo) da Cultura serem cada vez maiores.»
Pois parece que isto sim, esta parte do relatório foi integralmente acatada pelo Governo vigente: as contradições continuam reproduzindo-se espectacularmente, pouco ou nada se avançou na aplicação efectiva do Acordo e a pressa continua como antes, a mesma e da mesma forma inimiga do bom senso. E escusado será dizer que essa pressa explica também que pouco ou nada se avançou porque pouco ou nada se poderia avançar; é o que geralmente sucede quando se dispensa o bom senso, por pouco que seja, como, neste caso, quando se tenta mudar a Língua por decreto.
Esta petição, subscrita por largas dezenas de milhar de cidadãos portugueses, acabou tão ignorada quanto os diversos pareceres de entidades idóneas e credenciadas, não tendo produzido o mais ínfimo dos efeitos práticos. A não ser, talvez, por terem contribuído, ambas as coisas, petição e pareceres, para a divulgação do assunto junto da opinião pública e para uma tomada de consciência abrangente, por parte de grandes faixas da população portuguesa, da gravidade do problema e de como a Língua não é afinal assunto exclusivo das elites, sejam elas de intelectuais ou, muito menos, de políticos profissionais.

IV. Cumprimento do Art.º 4.º da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho (Lei da Iniciativa Legislativa de Cidadãos)

O presente diploma não acarreta quaisquer encargos económicos e financeiros para o Estado, pelo que não envolve, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas previstas no Orçamento do Estado.
Assim, tendo em consideração tudo o que antecede, apresenta-se o seguinte:

PROJECTO DE LEI DE REVOGAÇÃO DA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA Nº 35/2008
Artigo 1º
(Acordo Ortográfico de 1990 – entrada em vigor)
A entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 fica suspensa por prazo indeterminado, para que sejam elaborados estudos complementares que atestem a sua viabilidade económica, o seu impacto social e a sua adequação ao contexto histórico, nacional e patrimonial em que se insere.
Artigo 2º
(Disposição transitória)
A ortografia constante de actos, normas, orientações ou documentos provenientes de entidades públicas, de bens culturais, bem como de manuais escolares e outros recursos didáctico-pedagógicos, com valor oficial ou legalmente sujeitos a reconhecimento, validação ou certificação, será a que vigorou até 31 de Dezembro de 2009 e que nunca foi revogada.
Artigo 3º
(Disposição revogatória)
Este diploma revoga todas as disposições da Resolução da Assembleia da República nº 35/2008, de 29 de Julho, que com ele sejam incompatíveis.

Fonte: ILC Contra o Acordo Ortográfico – http://ilcao.cedilha.net/?page_id=92



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