Arautos d'El-Rei | Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa: Sou contra e tenho boas razões para isso…
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Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa: Sou contra e tenho boas razões para isso…

Do nosso correspondente
Armando Alexandre dos Santos (*)

Está em curso, presentemente, a efetivação da primeira reforma ortográfica da Língua Portuguesa deste século e deste milênio.
Nos últimos cem anos, houve duas grandes reformas ortográficas de nosso idioma no Brasil, e três em Portugal, sem contar outros pequenos ajustes, em ambos os países.
Resumidamente, a ortografia de nossa língua teve várias fases.


Primeira fase – puramente fonética

Inicialmente, era inteiramente fonética, ou seja, cada qual escrevia como falava e como ouvia. Daí decorria, é claro, uma grande variedade de grafias, de modo que não se podia falar em modo de escrever oficial e não se podia, portanto, falar propriamente em ortografia (etimologicamente, escrita correta, do grego orto, certo e graphos, escrita). Cada qual escrevia como bem entendia. Fenômeno similar ocorria em todas as línguas, não só no português, e se devia ao fato de serem relativamente poucas as pessoas alfabetizadas e serem muito menos numerosos do que hoje os documentos escritos.
Com a invenção da imprensa, por Guttenberg (século XV), generalizaram-se os livros impressos, e também se generalizaram a escrita e a leitura, que deixaram de ser privilégio de poucos letrados. Antes disso, pessoas cultas e influentes havia… que não sabiam ler! Isso pode parecer estranho hoje em dia, mas era assim.
Ler e escrever, durante muito tempo, não foi considerado algo importante para o exercício de funções públicas ou de liderança. O grande imperador Carlos Magno, por exemplo, consta que somente aprendeu a ler depois de adulto, depois de ter durante vários anos exercido a realeza e até participado, com opiniões teológicas muito ajustadas, de concílios regionais de bispos.
Nessa primeira fase, cada qual escrevia à vontade, inexistindo de todo uma norma de grafia. A palavra sapato, por exemplo, tanto poderia ser grafada como hoje o fazemos, como poderia ser ssapato ou çapato, ao arbítrio de quem escrevia.

Segunda fase – ortografia etimológica

Com a Renascença e a difusão dos incunábulos, tornou-se cada vez maior a influência dos legistas na cultura européia, especialmente a partir da célebre Universidade de Bolonha. Estudou em Bolonha o famoso Doutor João das Regras, que teve grande influência na corte do Rei D. João I, de Portugal, e dali haveria de marcar a cultura portuguesa.
Os intelectuais dessa corrente, entusiastas da velha civilização greco-romana desaparecida havia um milênio, começaram a prestigiar uma nova forma de escrever, mais fiel aos radicais originários gregos e latinos. Nos séculos seguintes, prolongou-se a influência dessa corrente na língua, predominando a idéia de que a grafia de uma palavra não deve se limitar a exprimir o seu som, mas deve também fornecer elementos que permitam, à pessoa culta, distinguir as raízes originárias da palavra e, assim, identificar o seu sentido.
E, diga-se de passagem, não deixavam de ter certa razão. Um exemplo, entre milhares de outros: lendo que Deus é “omnisciente”, a pessoa culta imediatamente dividia, em sua mente, a palavra em duas partes: omni (forma latina de omnis, omne, que significa tudo) e sciente (que vem do verbo scio, no infinitivo scire, que significa saber). Assim, omnisciente é aquele que sabe tudo. A própria grafia fornecia elementos para a intelecção do significado da palavra.
Chegou-se, entretanto, a abusos verdadeiramente caricatos. Por exemplo, o verbo aborrecer grafava-se abhorrescer (de ab-horreo). E, como não podia deixar de ser, havia grafias divergentes: filosofia, philosophia, filosophia, philosofia… sempre ao gosto e ao arbítrio de quem escrevia.
Não havia, pois, uma regra fixa, geralmente aceita e reconhecida como normativa.


Terceira fase – ortografia fonética

Na segunda metade do século XIX e em princípios do século XX, houve grandes polêmicas, em Portugal e no Brasil, sobre o critério que deveria determinar a forma correta de grafar as palavras. Dois grandes dicionaristas lusos marcam bem as duas posições principais.
Em primeiro lugar, Caldas Aulete, autor do “Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza” (1ª edição, Lisboa, 1881), era francamente favorável à escrita etimológica. Transcrevamos suas palavras, tiradas da introdução da obra, na ortografia própria:

“Adoptâmos a orthographia etymologica para os termos de origem erudita e historica, e para as palavras populares a fórma popular. Todavia a tendencia moderna é ir substituindo o elemento popular pelo etymologico. Hoje, geralmente, escreve-se egreja em vez de igreja; egual em vez de igual; similhante em vez de semelhante; logar em vez de lugar, não obstante este uso contrariar as leis da nossa morphologia.
“O systema que se funda na imitação do som, denominado orthographia phonetica, não tem outro principio regulador senão o capricho individual, e as suas regras pertencem ao dominio da imaginação. Hoje os grandes philologos não se occupam d’ella. Os phonetistas, em face da actual sciencia linguistica, representam o papel dos alchimistas da edade media em busca da transformação dos metaes.
“O fim secundario da orthographia é pintar os sons, o primario é dar-nos a conhecer a palavra, dizer-nos a sua origem e a sua historia.
“A orthographia phonetica trata de pintar, e mal, os sons que necessariamente se modificam de dia para dia, e concorre para a instabilidade das linguas; a orthographia etymologica tende ao contrario a fixal-as e a determinal-as” (op. cit., t. I, p. XIX).

O texto que acabamos de citar é de 1881. Dezoito anos depois, em 1899, Candido de Figueiredo lançava a primeira edição de seu “Novo Diccionário da Língua Portuguesa” (Lisboa, 2 vols.), no qual tomava explicitamente a defesa da ortografia fonética e simplificada, que acabou prevalecendo ─ para o bem da Língua, dizem uns, para o empobrecimento dela, sustentam ainda hoje outros.


Reformas ortográficas

Desde as primeiras décadas do século XX, gizaram-se acordos ortográficos entre os dois países ─ Portugal e Brasil ─ com vistas ao estabelecimento de um acordo unificador. Essas tratativas eram feitas em duas esferas, na cultural e na política.
Culturalmente, os estudos eram conduzidos por lingüistas lusos e brasileiros, ligados, respectivamente, à Academia Portuguesa (sucessora da Real Academia de Lisboa, fundada no século XVIII por D. João V) e à Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, no Rio de Janeiro. Politicamente, eram os governos de Portugal e do Brasil que chamavam a si a atribuição de legislar na matéria, ouvidos os especialistas acadêmicos, aos quais se atribuía o dever de zelar pela integridade e pureza do idioma.
Não vamos resumir, neste estudo, as idas e vindas dos trabalhos, os vários projetos que se sucederam nas primeiras décadas do século XX.
Apenas recordamos aqui um episódio engraçado, que mostra bem as incertezas e hesitações da época.
Na década de 1920, o velho jornalista Júlio Mesquita foi passar uma temporada de repouso na Europa, e por recomendação médica ficou algum tempo sem ler jornais, até mesmo sem ler o seu jornal, “O Estado de S. Paulo”. Ao partir, deixou, na direção da folha, seu primogênito Júlio de Mesquita Filho, auxiliado pelo seu irmão Francisco.
Enquanto seu pai tomava águas medicinais em Vichy, os jovens Julinho e Chiquinho, como eram chamados, ardorosos e impetuosos, resolveram aderir a um projeto de ortografia simplificada, numa das versões então debatidas acaloradamente. Como diretores interinos do jornal, assim o determinaram. Para surpresa geral, e também com enorme escândalo, o tradicional e sisudo “Estadão” começou a usar aquela ortografia revolucionária.
O fato produziu grande comoção no Brasil. Alguns jornais aderiram, outros se puseram contra, estabeleceu-se uma polêmica na imprensa e nos meios cultos. E os jovens diretores, contentíssimos, se viam no centro do debate. Era um lançamento mais do que promissor para dois jovens jornalistas.
Mas aconteceu o que eles não esperavam. Na França, o velho pai, tendo melhorado, sentiu curiosidade de ver como é que estava andando o jornal nas mãos dos filhos… e teve a maior decepção da vida! Quase morreu de susto, vendo seu velho jornal transformado numa folícula revolucionária e vanguardista de um sistema novo que, no íntimo do seu ser, lhe causava horror. E passou um telegrama “puxando as orelhas” dos meninos e dando ordens peremptórias para se acabar a brincadeira e retornar ao velho estilo.
Muito sem jeito, Julinho e Chiquinho tiveram que obedecer ao pai e acabou a sua festa. Anos depois, quando assumiram a direção do jornal, já estavam mais maduros e não se aventuraram a novas experiências do gênero.

Finalmente, depois de muitos percalços, a Academia Brasileira de Letras, em histórica sessão de 12 de agosto de 1943, aprovou a mudança ortográfica global da língua portuguesa falada no Brasil, imitando análoga decisão tomada poucos anos antes pelos portugueses. Foi uma reforma de grande amplitude, modificando radicalmente o modo de escrever a língua.
A introdução da nova ortografia foi muito discutida. A abolição das letras consideradas supérfluas ensejou a introdução de numerosos acentos diferenciais, o que, naturalmente, exasperou muita gente. As polêmicas prosseguiram pelas décadas seguintes.
O autor deste trabalho, nascido 11 anos após a entrada em vigor da nova ortografia, recorda-se bem de que se zombava muito, por exemplo, do acento circunflexo no advérbio “tôda”, para diferenciá-lo do substantivo feminino “toda”, com “o” aberto. Dizia-se que “toda”, sem acento, era um passarinho da Austrália que os zoólogos, e até mesmo os zoólogos australianos, desconheciam completamente, mas que os gramáticos brasileiros conheciam muito bem…
Nessa fase das discussões que a nova ortografia produziu, certa vez Mário de Andrade, já muito doente e de mau humor, declarou em entrevista ao jornalista Francisco de Assis Barbosa:

“Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. O essencial é termos uma ortografia. Que se mande escrever cavalo com três eles, isso não tem importância. Precisamos é de acabar com a bagunça. Não compreendo por que a palavra right se escreve com g-h-t. No entanto assim é que está certo. Escrever de outra forma na Inglaterra ou nos Estados Unidos é diploma de ignorância. Aqui, não. Todo mundo escreve como bem entende. O Estado da Bahia tem h. A baía de Guanabara não tem. Acredito que a questão ortográfica tem contribuído muitíssimo para a desordem mental no Brasil” (entrevista publicada pela revista “Diretrizes”, de 6-1-1944, reproduzida pelo “Jornal da ABI”, órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa, de janeiro de 2008).

Um grande crítico da reforma ortográfica de 1943 foi o Prof. Napoleão Mendes de Almeida, autor da respeitada “Gramática Metódica da Língua Portuguesa”. De acordo com ele, essa reforma nem seguiu a ortografia fonética, nem a etimológica, nem mesmo se pode dizer que foi uma reforma mista. Foi, na sua opinião, algo desastroso e ilógico.
Em 18-12-1971, entrou em vigor no Brasil nova reforma ortográfica, instituída pela lei 5.765, abolindo os acentos diferenciais (com algumas poucas exceções) e abolindo também o acento grave em palavras como cafèzinho e sòmente. Foi bem menor que a anterior, mas causou transtornos e dificuldades de adaptação em inúmeras pessoas já habituadas ao sistema anterior. A principal crítica que se fez à reforma é que seus benefícios, se é que os houve, foram muito menores do que os transtornos que causou.

Já em 1980 começaram tratativas para nova mudança ortográfica, desta vez com a finalidade explícita de unificar a ortografia de todas as nações lusófonas do mundo. Em 1971, havia apenas dois países lusófonos no mundo, Portugal e Brasil. Em 1980, com a desintegração do império ultramarino português, se haviam formado novas nações que falavam a língua de Camões: Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste. E começou a se propugnar uma unificação ortográfica, que permitisse a utilização de um dicionário comum.
O grande artífice, pelo lado brasileiro, dessa nova reforma, foi o lingüista e dicionarista Antônio Houaiss, contra o qual se levantaram numerosos críticos. Entre outros, manifestou-se contra ele o já citado Prof. Napoleão Mendes de Almeida, respeitado em todo o Brasil e em Portugal como o maior gramático vivo da época. Em entrevista a “Veja”, publicada na edição de 24-2-1993 da revista, sob o título “Chega de asnices!”, assim se exprimiu ele:

“VEJA – O que o senhor acha das reformas ortográficas feitas periodicamente no português?
ALMEIDA – Vejo como uma forma de comércio. O interesse das reformas ortográficas é financeiro, não intelectual ou prático. Tem por fim o lucro, seja da Academia Brasileira de Letras, seja de alguma editora, seja de algum rato de ministério, como é o caso atualmente no Planalto. Certa vez o Cláudio de Souza, então presidente da ABL, esteve no meu escritório, antes da reforma de 1943, e me perguntou por que eu era contra a reforma ortográfica. Ele me explicou que a Academia tinha despesas com a impressão do vocabulário. Eu disse: meu caro, não acha que a sua resposta deve ser substituída pela reflexão de que o interesse da reforma ortográfica é de caixa, e não de ensino? O escritor interessado quer modificar a ortografia, mas o livro dele, sua gramática, com a nova ortografia, já está pronto. Em 1949, quando saiu um decretinho no Diário Oficial introduzindo a nomenclatura gramatical brasileira, um dos tratantes da comissão já estava com o livro dele, incluindo as modificações, na terceira edição.
VEJA – O acordo de unificação ortográfica entre o português do Brasil e o de Portugal, negociado atualmente pelo ministro da Cultura, Antônio Houaiss, encaixa-se nesse caso?
ALMEIDA – Faço minhas as palavras do jornalista Paulo Francis, num artigo recente. O bom dessa rusga diplomática que está ocorrendo entre Brasil e Portugal é que ela matou o acordo ortográfico do Antônio Houaiss. O Houaiss não é bobo, já admitiu que o acordo foi arquivado por tempo indeterminado. Isso porque ele é editor, paga imposto de renda pelo que edita. Qual seria o seu interesse na reforma senão ser o primeiro a dizer: “O que foi decretado ontem já está em forma de livro?” Vernáculo não é política para viver de alternativas, para alimentar-se de amizades e confrarias. O vernáculo vive de escritores, e estes não se impõem pela quantidade, senão pela qualidade de obras que expressem o belo sem protuberâncias vocabulares nem manifestação de desnutrição, de doenças gramaticais.
VEJA – A unificação da ortografia usada no Brasil e em Portugal, prevista pela reforma, não seria desejável?
ALMEIDA – Que unificação? Não existem duas línguas, apenas uma.
VEJA – Mas muitas palavras são usadas ou grafadas de forma diferente nos dois países.
ALMEIDA – E no Brasil não acontece o mesmo, de região para região? Não há diferenças prosódicas e de significação? Isso não prejudica o idioma de forma alguma. Tome-se, para efeito de comparação, o dicionário Webster da língua inglesa. Para certas palavras ele dá quatro pronúncias diferentes. Outras são mostradas com três grafias diversas. Isso é motivo para um espertalhão querer introduzir uma lei que determine uma só forma ortográfica, uma só pronúncia da palavra?
VEJA – O acordo ortográfico prevê a eliminação de vários acentos nas palavras. Isso não tornaria mais fácil a tarefa de quem escreve, lê ou estuda o português?
ALMEIDA – A acentuação no português é um horror. A ortografia de 1943 está errada, mas se forem mexer vai piorar ainda mais.
VEJA – O que há de mais aberrante na acentuação do português?
ALMEIDA – Tome-se, por exemplo, a palavra auxílio. No idioma espanhol existe essa mesma palavra, com o mesmo significado, mas ao contrário do que ocorre no português ela leva acento na forma verbal, auxilío. O motivo é simples: de cada dez vezes que essa palavra aparece corriqueiramente, talvez apenas uma seja na forma de verbo, nas demais ela aparece como substantivo. Então, nada mais lógico que se deixe o acento para diferenciar o verbo. Há mais bom senso na ortografia espanhola nesse aspecto.
VEJA – O acordo prevê também a volta das letras k, w e y ao alfabeto, assim como a eliminação do trema no u. O que acha dessas propostas?
ALMEIDA – As três letras em questão nunca deveriam ter saído do alfabeto. Precisamos delas no dia-a-dia, na matemática, por exemplo, e também na escrita comum. Quanto ao trema, é inútil, ninguém precisa dele. Na verdade, quem deve ensinar a pronúncia certa é a escola. Eu mesmo não uso acentos quando escrevo meus rascunhos. Para quê? Eu sei ler. Mas para acrescentar o k, o w e o y ao alfabeto, assim como para eliminar o trema, não é preciso fazer uma grande reforma ortográfica. Basta um decretozinho, uma lei que regule o assunto”.

Depois de falecido Houaiss, depois de corrida muita tinta, afinal é a reforma de Houaiss, ao que parece com alguns abrandamentos ocasionados pela necessidade de facilitar a aceitação do acordo por parte dos portugueses, que está em vias de entrar em vigor.

Não vamos expor aqui, em pormenor, quais são as mudanças que introduz a presente reforma, pois a grande imprensa as tem noticiado e divulgado amplamente.
Estava previsto que a reforma entraria em vigor no dia 1° de janeiro do corrente ano, mas essa data foi postergada, pois as autoridades lusas não a aprovaram em tempo hábil. Somente agora, no corrente mês de maio de 2008, as autoridades portuguesas, depois de prolongados estudos, a aceitaram. Resta somente agora fixar a data para sua entrada em vigor.

Nossa opinião

Nossa opinião é francamente contrária à mudança, pelas seguintes razões:
– Toda mudança em costumes bem estabelecidos, ainda que para melhor, sempre traz perturbações. A mudança só deve ser feita, em princípio, se as vantagens que trouxer superarem largamente os inconvenientes do status quo. Ora, isso manifestamente não acontece no caso concreto, porque todos os seus adeptos, portugueses e brasileiros, se dizem insatisfeitos com ela, vendo-a como parcial e provisória, apenas como um passo para outras mais completas a serem estudadas no futuro.
– A introdução da nova ortografia, sobretudo com a perspectiva de ser ela provisória, trará enormes transtornos no sistema editorial das várias nações envolvidas, exigindo a reformulação de incontáveis obras já em circulação, e trará problemas que se estenderão por, pelo menos, toda uma geração. Esses problemas serão mais sentidos pelas pessoas de mais idade, já formadas e acostumadas ao sistema anterior. Vantagens, sem dúvida, haverá, e polpudas, apenas para os interesses econômicos de editoras que lucrarão com isso. Nesse particular, o saudoso mestre Napoleão Mendes de Almeida tinha inteira razão.
– A idéia de que a nova ortografia constitui um passo para a constituição de um dicionário único do idioma português falado no mundo inteiro não se sustenta. Ela é utópica e, se fosse realizável, seria indesejável. Isso porque o idioma português, diferentemente de outros idiomas, se caracteriza pela extrema receptividade em relação a neologismos. No castelhano, por exemplo, a utilização de uma palavra não existente no dicionário da Real Academia de Madrid é considerada erro, de acordo com a norma culta vigente na Espanha e em todos os países da Hispano-América. Já no português, a facilidade com que se criam palavras novas constitui uma das riquezas do nosso idioma. No século XVIII, quando foi publicada na Espanha a primeira versão do dicionário da Real Academia de Madrid, o rei de Portugal encarregou a Real Academia de Lisboa de fazer um dicionário português, para não ficarem nossos patrícios atrás dos vizinhos espanhóis. Os filólogos portugueses penaram durante muitos anos e, afinal, publicaram apenas o primeiro volume do dicionário, referente à letra A, desistindo do empreendimento porque, quando concluíram a redação, deram-se conta de que já haviam surgido muitas palavras novas iniciadas coma letra A, durante os muitos anos de seu intenso labor…
Esse fato cômico serviu a Alexandre Herculano para, em “Lendas e Narrativas”, referir-se a certo jumento que se pôs a azurrar, dizendo que ele “começou por onde, às vezes, academias acabam”. Aludia assim ao último verbete do dicionário inacabado, que era AZURRAR, sinônimo de zurrar…
– Acresce que a unificação do idioma no mundo inteiro, além de ser utópica e indesejável, é também perfeitamente desnecessária. O signatário deste artigo trabalha com editoras brasileiras e portuguesas e pode atestar que qualquer brasileiro letrado, lendo um livro português, o entende perfeitamente, apesar de uma ou outra diferença semântica, ortográfica ou de sintaxe. E, em sentido recíproco, qualquer português letrado lê o que se publica no Brasil sem dificuldades. O mesmo vale para as outras nações lusófonas, com as particularidades de cada qual, regionalismos etc. A idéia, pois, de que a nova ortografia vai proporcionar um intercâmbio editorial muito mais intenso entre os vários países lusófonos, não procede. Ou melhor, é apenas pretexto a serviço de interesses econômicos de grandes editoras.
– Resumindo: as modificações impostas pela presente reforma são insuficientes para atingir o fim a que se propõem, de unificar o idioma no mundo inteiro, e são mais do que suficientes para produzir muita confusão… e dar muito lucro a alguns interessados.

Concluímos lembrando que uma das línguas mais complicadas do mundo, o francês, não tem reformas ortográficas há séculos. Sua ortografia é considerada, até pelos franceses, extremamente difícil, tendo algumas palavras até três acentos. Isso não impediu, entretanto de ser o francês a língua da diplomacia universal durante séculos, conhecida e falada até hoje por pessoas cultas de todo o mundo.
Quanto ao inglês, não tem acentos, mas tem uma grafia complicadíssima. Aqui no Brasil, costumamos exibir a letra x como o auge da complicação, porque corresponde a cinco sons diferentes. É verdade, mas é caso único. Já no inglês, há letras e dígrafos que se pronunciam até de cinco formas diferentes, e há numerosos sons que se escrevem de até cinco formas diversas. No inglês, só sabe pronunciar quem conhece a palavra. A mera leitura das letras não é suficiente para se conhecer a pronúncia. Isso, entretanto, não impediu o inglês, que também há séculos não reforma sua ortografia, de ser o idioma internacional de nossos dias.
Por que, então, essa mania de reformar nossa língua? Por que maltratá-la tanto?
A esse respeito, só cabe citar, de memória, a oportuna afirmação de Francisco Rodrigues Lobo, em “A Corte na Aldeia”: depois de elogiar as belezas da Língua Portuguesa, lamenta-se ele de que seus falantes “trazem-na mais remendada que capa de pedinte”.

Principais fontes consultadas:

Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 24ª ed., Saraiva, S. Paulo, 1973, 575 pp.
F. J. Caldas Aulete, Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, Lisboa, 1888, vol. I, 914 pp.
Candido de Figueiredo, Novo Diccionário da Língua Portuguesa, 3ª. ed., Lisboa, vol. I, 1102 pp.
Revista “Veja”, edição de 24-2-1993.
“Jornal da ABI”, edição de janeiro de 2008.
“Folha de São Paulo”, edição de 28-8-2007.

(*) Armando Alexandre dos Santos é escritor e jornalista profissional, tem a dupla cidadania ─ portuguesa e brasileira ─ e reside em São Paulo, Brasil. É diretor de publicações do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e colaborador assíduo da “Revista Brasileira”, órgão da Academia Brasileira de Letras. E-mail: aasantos@uol.com.br



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